quinta-feira, 19 de novembro de 2020

. [do livro de cartas] vestido de esperança .

 querido Salvador,

uma cigana leu nas linhas das minhas mãos que somos destinados um ao outro. achei bonito. e corri a lhe escrever este bilhete, porque no fundo, sei que cê também sabe. agora, aqui, pense comigo: quantas pessoas neste mundo tem a chance de encontrar suas pessoas preferidas em uma só existência?

talvez seja sorte, mas eu prefiro acreditar naquele fio fino que liga nossos corações e que, vez ou outra, tem a graça de virar laço e não se romper. veja bem, querido: são exatos 439 quilômetros que nos separam. e ainda assim, mesmo entre tanto tempo e tanta distância, ainda acho bom quando você telefona ou escreve, quando percebo uma fotografia tua sorrindo, quando me encarrego de lembrar do passado todos os dias pra que ele não se apague de mim...

já te disse e devo repetir, sobre o quanto tenho cuidado com a história que estamos ainda a escrever. e que me parece ser feita de infinito. porque é ela a me salvar quando tudo fica muito difícil ou quando tenho a impressão de que o mundo virou um espaço enorme de solidão. e aí, prefiro o despenhadeiro e a corda bamba de viver carregando ocê em meu coração, do que seguir sem esse amor pro resto de toda a vida.

certo, Salvador, é que gosto de acreditar mesmo na cigana principalmente quando ela tornou a dizer: "terás nessa vida só um amor. e ele já passou por ti"... cê acredita? eu sei que sim. e é por isso que reaprendo, todos os dias, a gostar dessa liberdade vestida de esperança. em ti...

com amor, 
Alice.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

. tempo de ipê .

  .nessa época de setembro, os chãos que já tiveram sorte, ficam todos encobertos por sementes de ipê amarelo. cheias de leveza, elas dançam de um lado pro outro quando venta nas calçadas. destemidas, invadem as casas e os quintais de perto sem sequer pedir licença. esperançosas, aguardam que alguma chuva seja capaz de fazê-las brotar num seco chão qualquer que deseje receber mais vida. mas em setembro pouco chove. fica assim: esse baile de coisinhas miúdas, terra vermelha e céu azul, vistos por toda janela. pode-se limpar a casa todos os dias, que sempre estará suja. mãe diz que é normal, que antigamente também era assim, tudo seco demais desde agosto, embaçado que nem olhos de gente que pouco enxerga. mas me lembro que um dia, era um setembro diferente, e no dia primeiro de primavera, choveu. sei porque era teu aniversário: as cadeiras molhadas de festa que não acontecia porque chovia. cê nunca foi de ligar muito pra essas coisas, ao contrário de mim, que tenho sempre chuva e ausência em meus dias de novo ano. lembro também, como se fosse hoje: cê subiu as escadas depressa e eu achei que ia era tirar tudo, a festa toda, de lá do terraço pra que não molhasse. mas do seu jeito sempre aberto, cê ficou lá parado, quieto, sorria miúdo, na parte pequena que era coberta, olhando a chuva caindo, caindo… eu nem tive coragem de xingar, de dizer que as pessoas fossem mesmo assim, ou de abrir a porta pra que elas pudessem entrar: era tudo tão bonito do jeito que tava, que eu fiquei parada do seu lado direito, compreendendo porque é que eu nunca tinha ido embora. e porque é que jamais iria. desde então, nunca mais choveu em setembro, com exceção desses últimos dias de inverno desse ano esquisito. fez frio. eu olhava o ipê da minha rua, pela janela, e via que as sementes continuavam seu ciclo de voar no vento, pousar em quintais, esperar brotar… e pensava, então, que fizesse chuva ou fizesse sol seco, as coisas, as mais importantes, insistiriam em existir. assim como o ipê amarelo que mora na rua de casa. assim como o amor vivo que ainda mora dentro de mim...


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

. modo de ver .

 ficava olhando as coisas daqui de cima e achando estranho que elas só existissem ali, onde eu estava. era com quase tudo assim: vento, chuva, verso, sentimento, gente. vez enquando, inventava umas palavras como desver, deslembrar. sempre tirando um pouco das coisas que existiam, como se as pudesse apagar. 

mas tem maneiras de estranheza que não se apaga, tipo coração partido ou remédio demais tomado pra dormir. que nem pôr de sol também: só se vê uma vez porque mesmo acontecendo todo dia, viver é um instante por vez e as coisas do céu nunca se repetem, ainda que entre tantos dias de olhos parados no mesmo ponto. 

ponto: aquilo que cê marcou no chão pra que eu pudesse um dia ter pra onde voltar. mas que eu nunca soube e por isso mesmo passei todo o tempo do mundo andando em círculos, passando um monte de vezes pelo ponto marcado, sem sequer acertar por nem saber que ele estava ali. foi aí que eu sobe, em uma manhã quente de ainda inverno, que tinha acabado. 

porque não dá pra atravessar todas as estradas da gente, a vida inteira, sem inaugurar algo novo do lado de dentro. e sem perceber aquilo que sempre esteve, porque vai ver nunca existiu. ao menos não daqui de cima, de onde tudo lá embaixo só sobrevive por querer. ou pelo meu modo de ver...




quinta-feira, 9 de abril de 2020

. [do livro de cartas] voltar sempre a dançar .

querida Bisa,

os tempos ficaram um tanto diferentes. onde é que já se viu não poder ir à rua nas tardes de outono? fico pensando em como seria se estivesses aqui, pairando nesses silêncios. sei que me dirias qualquer coisa relacionada ao tempo e à voz do nosso coração... mas devo lhe dizer, ainda, que sobre isso já aprendi. e, no entanto, continuo um tanto aflita, buscando algumas respostas que bem sei: não existem...

penso que se Salvador não tivesse partido, talvez a companhia dele faria com que eu me lembrasse das leis do universo e da força dos astros. e assim o mundo voltaria a ser leve. mas já combinei comigo, Bisa, que dessa vez aprendo a conviver com essa ausência, que me é presente há tantos verões. não o escrevi, também não telefonei. soube pelos recados do vento que os números mudaram e, nem assim, fui tentar saber sobre eles. guardei pra mim os meus sentidos, pensando em fazê-los aprender que é esse o amor que importa agora... e penso, aqui, que talvez nós dois tenhamos escolhido, assim, partir...

vez enquando, até chego à janela... ouço os vizinhos em suas alegrias, penso em como é bonito viver isso da união, dos sorrisos, da partilha do amor, ainda que ele se transforme às vezes em algumas farpas. penso também que passaremos por tudo isso, quando aprendermos a transformar nosso lado de dentro. "orações e meditações ajudam", cê bem me diria. "mas eles só não são capazes de salvar a gente da própria mesquinharia. é preciso que a gente aprenda a se olhar por dentro, pra que só então volte a valer tudo isso que nos é ofertado de maneira gentil". 

volto a pensar no outono, nas luzes alaranjadas enfeitando a varanda dos fundos, na forma de existir em mais calma e menos dor. 

há de existir um tempo em que a gente vai poder pisar o chão sem medo dos pés descalços. 
e voltar sempre a dançar...

com amor,
Alice

segunda-feira, 2 de março de 2020

. [do livro de cartas] viver de mim .

Querido Salvador,

desde que cê foi embora, dessa que eu suspeito ser a última vez, não tive coragem de lhe escrever. parecia, aqui dentro do meu peito, que alguma coisa estava a se desfazer aos pouquinhos. e eu, sempre tão supersticiosa, achei prudente me encolher cada vez mais pra dentro, como se assim eu pudesse encontrar um jeito mais fácil de viver. 

acontece, Salvador, que eu não consegui mais sair desse lugar de pequeneza porque passei a ter medo de encontrar qualquer coisa que se assemelhasse a ocê, quando eu chegasse num ponto de ver grandezas. e aí, já se viu: de encolhimento em encolhimento, passei a não mais me reconhecer. danei de entrar nuns lugares escuros, e de viver uns vazios de gentes que, a meu ver, ainda não aprenderam o amor. 

porque assim: aos trancos e também barrancos, eu aprendi. que amor, amor mesmo, é aquela coisa da gente se importar, de ter afeto, de escrever carta, de estender a mão, de dividir a dor, de partilhar o sorriso, de viver de simplicidade e estrelas. cê há de convir comigo que assim é bem mais fácil. mas acontece também, Salvador, que o mundo todo acha que é complicado, assim como ocê passou a achar que era. 

de uma hora pra outra, cê foi ficando igual às pessoas que não se importam. e que levam dos olhos da gente, nosso único brilho de ver lá fora. e aí eu chorei. um choro que, se existisse mesmo, daria pra encher um pote daqueles grandes do seu doce preferido. mas eu, de tanto me cansar de rastros rasos, achei melhor pensar que lágrima tem mesmo gosto de mar. e me tornei infinita. perdoe se não aguardo mais a tua ligação. 

por enquanto, eu só preciso viver de mim…

continua sendo com amor,
Alice






sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

. poema curto .

[para quem está sempre a partir]

não se sabe a medida exata dos começos. 
é difícil.
quando a gente percebe, já está inteiro lá,
dentro de uma nova história.

vivo de histórias novas o tempo todo.
parece que elas preferem dançar dentro de mim
do que do lado de fora
onde tudo o que é real
realmente acontece.

- não dá pra saber o que é real.
(você me diria)
e mesmo assim, 
mesmo sabendo de cór todas as suas falas
eu ficaria feliz em ouvir a tua voz
ecoando em minhas noites de chuva
e tanto silêncio.



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

. [rascunhos] part.ida .

[para ouvir este texto, clique aqui ]

propuseram-nos dias para tratar do esquecimento. 
era preciso, entre um desajeito e outro, estabelecer uma distância comum, conter o desejo da fala, controlar a ânsia da voz, medir a pressa do sonho. 
eu, que nunca fui muito boa em esquecer nada que vive do lado de dentro, passei dias de profundo silêncio. 
em que cortei os dedos com faca de cozinha, 
queimei a língua com chá de camomila, 
quebrei os óculos que mais gostavas, 
manchei de lavanda minha única roupa branca. 
tudo por andar distraída, nessa ideia de que partir, não sendo mais novidade, deveria ter se tornado em mim, uma tarefa habitual. 
como o café que se toma ao acordar, 
como os sapatos que se calça antes de ir à rua, 
como a mão que toca as rosas de jardim só por achá-las bonitas demais para permanecerem apenas nos olhos. 
fala-se muito sobre deixar ir, sobre obedecer as nossas vontades e respeitar a nossa individualidade. 
mas, há de convir comigo que, muitas vezes, a gente só quer permanecer. 
sem qualquer regra ou sintoma de adeus, 
sem qualquer força ou coragem nos pés, 
sem qualquer padecimento ou velocidade na alma. 
não se pode ter, no tempo, o amor e a destreza presos em uma mesma frase. 
mas se pudesse, daria a minha vida (e também a tua) para que as memórias encontrassem uma maneira de fim...



quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

. devagar .

é certo que estou demais a pensar na posição dos astros, desde que ocê se foi. fico daqui imaginando até onde é que vai o infinito e se, chegando lá, não haverá de existir uma curva que aparece só pra reiniciar tudo o que envolve a nossa noção de fim. não possuo a resposta pra todas as coisas. no entanto, bastaria que todo esse turbilhão de silêncio passasse, pra que eu então pudesse ir embora sem pensar no que é certo ou errado, nem no que senti. verdade mesmo, é que aprendi a duras penas que a ausência de respostas pode ser muito mais dolorida do que um não ou um sim: ninguém deveria existir na dúvida do que poderia ter sido, quando se há ainda coragem para o ser. mas daqui, debaixo desse céu que me brilha em estrelas quando às vezes anoitece, eu desisti de esperar por milagres e de desejar que existam abrigos tão luminosos quanto um sorriso teu. não careço de muito pra viver: um pouco de papel, alguma caneta com muita tinta, um tanto de solidão, a espera por meus outonos. algumas coisas não devem ter a ver com a forma com que os planetas se organizam. mas às vezes, eu gosto de acreditar que sim...