segunda-feira, 1 de março de 2021

. tudo pode, o nosso coração .

quando criança, aprendi com minha avó o significado da palavra "alinhavar": usar agulha e linha pra dar pontos largos e marcar aquilo que a gente queria costurar ali, no tecido. vó alinhavava barras de calça, mangas de blusas, beiradas de vestido. tudo com as mãos. depois, cuidadosamente vinha a máquina de costura fazer seu trabalho de arrematar, costurar de verdade, colocar firmeza pra não soltar nada. eu nunca soube costurar. fiz até um curso uma vez, em uma associação que recebia nas tardes de terças e quintas-feiras, com café e biscoitos, senhorinhas mais velhas. saí de lá, depois de seis meses de curso, com duas saias e uma blusa, que elas costuraram pra mim enquanto me contavam histórias e se divertiam diante da minha juventude. 

lá, no curso com as senhorinhas, eu alinhavei muito tecido. era a única coisa que eu dava conta de fazer de verdade. as saias costuradas por nóe tinham uma beirada de renda, um pouco de pregas as tornando quase rodadas. e era preciso medir, marcar, cortar tudo antes de passar a costura mesmo, da máquina. "aí a gente alinhava", elas me ensinavam. e eu fingia que não sabia porque sempre achei muito audacioso saber de todas as coisas. a ignorância, às vezes, pode ser uma dádiva. uma das nossas saias era branca. a outra, amarela com flores bem miúdas e distribuídas assimetricamente pelo tecido. como também nunca fui muito boa em quantidade, sempre comprava pano demais ou de menos. esse amarelo mesmo: sobrou de jeito que dava até pra se ter outra saia de outro modelo. mas eu não quis. um pouco porque já teria uma e duas às vezes é demais. outro pouco porque às quintas-feiras, se juntava a nós uma senhorinha que se encantou pelo tecido. aí eu o entreguei a ela, sem pensar mesmo. e ele virou uma blusa que alinhavamos juntas.

hoje, bastante tempo depois, quando eu penso em alinhavar, acho bem que fazemos isso com nossa própria vida. alinhavamos nossos passos antes de costurá-los com firmeza. pensamos nosso caminhar, ponderamos antes de ir adiante e só quando nos sentimos bem firmes, seguimos. às vezes, se não arrematamos direito, a costura solta. e é assim que aprendemos sobre a não existência da certeza ou sobre a bonita forma das coisas existirem além de nós. é assim que sabemos também que passamos a nossa vida inteira alinhavando nosso próprio coração, pra fazer dele inteiro, ainda que cheio de remendos das mais variadas cores...


2 comentários:

Jaya Magalhães disse...

As mudanças eu já tinha vindo espiar. E o texto eu já tinha sentado com ele. Eu também aprendi sobre alinhavar com minha vó Nina, que costura até hoje, inclusive de olhos fechados, sem perceber.

Coração sem remendo não sente, eu fiquei pensando daqui. E a colcha de retalhos de vovó Nina é a mais bonita que já vi, acho que daí aprendi que se sairmos alivanhando acaba ficando alguma poesia. Que nem esse texto teu.

Jaya Magalhães disse...

As mudanças eu já tinha vindo espiar. E o texto eu já tinha sentado com ele. Eu também aprendi sobre alinhavar com minha vó Nina, que costura até hoje, inclusive de olhos fechados, sem perceber.

Coração sem remendo não sente, eu fiquei pensando daqui. E a colcha de retalhos de vovó Nina é a mais bonita que já vi, acho que daí aprendi que se sairmos alivanhando acaba ficando alguma poesia. Que nem esse texto teu.