quarta-feira, 19 de junho de 2019

. [do livro de cartas] esperançar .

querida Bisa,

a ausência danou de fazer morada em mim. por isso não lhe escrevi antes: quis cuidar dela (a ausência), como quem vigia o sono de tantos dias sem adormecer. não tive medo, nem senti sequer solidão. só fiquei ali, quieta, sentada na beira das coisas, como quem espreita a luz que entra pelas frestas da porta em manhãs de sol. vez ou outra, batia em meu rosto um vento forte, parecido com os de nossos agostos... "vendaval assim em pleno junho?", dizia cá o senhor João, agasalhado até às orelhas para se proteger do frio.

acho que danei de querer me proteger demais das coisas também, Bisa. e não sei mesmo se isso é de certo bom ou ruim. só sei que assim, desse jeito, eu meio que entendi que resguardo meu coração de tanto sofrer. sei que vais me responder em uma próxima carta, que a gente não deve se privar da vida. que certo mesmo é dar cara a tapa, ainda que as marcas fiquem é no coração. mas não quero, Bisa, de jeito nenhum, voltar a perder o jeito das palavras. e é isso o que acontece quando me doo demais: deixo de cuidar das coisas que são minhas, esqueço como se juntam as letras, como se compõem os versos, como se remontam as linhas. e viro um caquinho, que custa a se remontar.

sim, eu sei também que isso faz parte do amor, essa coisinha frágil que a gente nunca vai compreender como se ajeita em nós sem que a gente sequer perceba. pecado seria eu lhe dizer que nunca mais quero amar, Bisa. mas eu ainda tenho, cá no fundo do peito, uma esperança fininha de aprender a começar de novo. de encontrar um coração de ar puro, de sorriso leve, com alma de partilha e nunca olhos de adeus. que traga os bolsos cheios de imperfeições, mas que não tenha medo de andar descalço em chão de terra pura, nem de dividir as inteirezas de si...

como diria vovô: enquanto a esperança couber dentro de um verbo, a gente vai sempre caçar jeito de conjugar e esperançar...

eu esperanço.

com amor, 
Alice,

domingo, 9 de junho de 2019

. reticências .

não precisam de explicação as coisas que são pequeninas. 
não carece dizê-las que se tornem grandes, que sejam fortes, que se aprumem, que tomem jeito.
as coisas que são pequeninas não sabem viver assim, com a pressa, com o valor altivo dos espaços infinitos, com o barulho excessivo das ausências. 
elas precisam que o vento as tire pra dançar, de vez enquando, nas tardes que são de agosto. e que os jardins de girassóis brotem diante de toda primavera, colorindo de amarelo-sol aquilo que a gente chama apressadamente de "passar do tempo"...
aprenderam, assim tão pequeninas, a não ocupar espaço demais;
a se preencher de vazios e silêncios;
a escrever poemas e rimas que cantam a solidão;
a catar estrelas com a ponta dos olhos...
não são bobas ou de menos valor, as coisas que são pequeninas.
embora pareçam ser: foscas como terra seca; ingênuas como flores brancas; apagadas com manhãs acinzentadas.
mas quem lhes souber ver o coração, vai receber das coisas que são pequeninas, 
confortáveis gestos de delicadeza, 
como passos milimetricamente juntos, dedos entrelaçados e um jeito sempre simples de dizer:
"ei, eu vou estar sempre aqui".
ou algo tão parecido com o amor, que é capaz até de, distraidamente, se confundir os verbos e os jeitos de infinitivo...