segunda-feira, 19 de novembro de 2018

. [do livro de cartas] versos partidos .

quando dei por mim, Salvador, cê já não estava mais aqui...

assustada, procurei em cada canto de nós, na esperança de que houvesse algum resquício seu, esquecido entre alguma lembrança. pra minha surpresa, encontrei: teu jeito de sorrir com os olhos pequenos, teu sotaque desesperado de quem está sempre com pressa, tuas camisas brancas de malha barata e teu all star cinza de cadarços pretos. tudo estava aqui, em seu devido lugar, organizado milimetricamente entre minhas memórias mais serenas.

mas acontece, Salvador, que mesmo juntando todos esses seus pedacinhos e refazendo-os dentro de mim, mesmo assim, eu não te encontrei mais aqui. não é mais o teu rosto que enxergo entre os jornais da feira, nem é mais o teu cheiro que sinto quando abro a primeira gaveta da escrivaninha. não lhe escrevo mais poemas, não lhe sirvo mais rimas, não tenho vontade de lhe ver... parece, Salvador, que tudo que ficou d'ocê em mim, é uma vontade minha de que cê permanecesse, só porque é seguro saltar dos abismos te sabendo perto. mas no fundo, sei que de um tempo antes e em diante, fui eu aprendendo a saltar sozinha todos os obstáculos, sem sequer perceber o quanto a vida já me preparava pra essa nova solidão.

e é por isso que lhe escrevo... pra contar que não há ninguém em teu lugar: ele continua vazio, preenchido agora por mim, e essa coragem às vezes falha em recomeçar. os sons têm outras formas; os objetos tomaram proporções diferentes; as distâncias se tornaram ora curtas - ora longas demais; minhas palavras carregam uma firmeza quase endurecida, que adoço com um pouco dessa minha melancolia ainda tão familiar... estou descobrindo minhas maneiras de redescobrir o mundo, querido. e o mais assustador é que em nenhuma delas há você...

peço-lhe perdão pela maneira escrita, essa letra envolta em um cansaço que há dias trago nos olhos, pelo papel amassado denotando descuido. acho que o amor me transformou, Salvador. e, assim como não te encontro mais aqui, preciso dar logo um jeito de me buscar e me devolver pra mim


inteira...



ainda, e sempre,
com amor,

Alice.



Um comentário:

Jaya Magalhães disse...

Eu fico TÃO feliz por esse passo de Alice...