terça-feira, 4 de setembro de 2018

. [do livro de cartas] somos infinitos .

Salvador,

ando por essas ruas sem saber ao certo pra onde elas irão me levar. às vezes sinto saudade, mas é como vento que toca o rosto da gente e logo passa... soube, nesses meus dias de mais silêncio, que é preciso muito pouco para se viver. pensei também n'ocê, nos seus sonhos desfeitos, e por alguns instantes cheguei a questionar de que adianta os meus tomando forma, se cê não tá aqui pra dividir as alegrias comigo. 

teria sido diferente se cê tivesse ficado. mas sei, e cê sabe ainda, que de certa forma eu também escolhi partir, mesmo sem ir embora por inteiro. porque, Salvador, por mais que a gente siga nosso rumo, vai sempre ficar um pouco da gente em cada canto por onde passamos. e cê tem muito do meu bem-querer, da mesma forma que carrego um tanto do seu jeito de sorrir e de voar. 

hoje, querido, no entanto, compreendo que todas as perdas que desenhamos pelo nosso caminho, foram suficientes para nos estabelecer distâncias, como essa que vivemos agora. ando tão vazia, catando pedaços de mim que foram se desmanchando pelo chão. Bisa me disse, ontem à noite, que é mesmo assim que acontece quando o amor se transforma: a gente vive uns dias dentro de um não pertencer a lugar algum. fica ali, pairando entre as sensações de estranheza diante do próprio corpo e do alívio em ver os olhos lacrimejarem diante do espelho. 

depois a gente se preenche de novo... mas de um jeito diferente, que diz muito sobre ser da gente mesmo, arriscando até algumas flores coloridas diante das janelas. por isso, Salvador, pela primeira vez em tantos anos, desejei com ânsia a chegada da primavera: pra entrar num jeito de viver entre mais cores, mesmo sem perder essa minha tão acostumada melancolia.

desejo-lhe, então, nada mais do que lhe disse ao telefone naquele domingo chuvoso: que sejas feliz. uma felicidade tão grande, capaz de lhe doer as bochechas diante do mais largo sorriso. talvez eu não tenha mesmo aprendido quase nada sobre o amor, meu querido. talvez eu vá mesmo viver sempre entre reticências e nuvens, sem nunca conseguir pousar... talvez eu precise mesmo seguir seu conselho, ser menos generosa e mais pé no chão, pra que o amor me aconteça de uma vez certeira, sem tanta ilusão. talvez tenha chegado mesmo a hora de ir embora de uma vez, querido, mesmo dentro da certeza de que, no fundo, eu já parti bem antes de você.

ainda assim, vai ser sempre com amor,
Alice.






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